sexta-feira, 30 de janeiro de 2009

Entardecer

Sobre a pele teu olhar arde
Claridade quente e serena
de sol no princípio da tarde

Abordagem obscena
Exploração covarde
da minha pele morena

Pele sequiosa
que arde
e cora

de uma timidez pequena

Iriene Borges
Morning sun
Edward Hopper

sexta-feira, 23 de janeiro de 2009

Caligrafia da entrega

O olhar
se entrega ao objeto
Nele se exaure e extasia
como se fosse fantasia
o querer precipitado

E súbito se nega
olhando novamente
indiferente
raso
conciso
e calculado

O desejo existe
febril e impetuoso
ávido por prazer
na brutalidade da carne

Mas em mim
se dilui e transfigura
na linguagem crua
na superfície táctil
da palavra nua

Iriene Borges

Egon Schiele

segunda-feira, 19 de janeiro de 2009

Enquanto houver amor em mim

Nada posso senão amar
Enquanto for romântico e vulgar
entretanto real o estampido
da bala de festim
cabe cair e morrer
sem sangrar
E fechada a cortina
levantar e sair
sem ver a platéia em catarse
a rir
do desempenho ridículo e sem par

Iriene Borges
egon Schiele

terça-feira, 6 de janeiro de 2009

Pesadelos Urbanos

Ela pendia da cadeira alaranjada, como uma flor vistosa num caule fino. Ora o corpo pendia para um lado, ora para o outro, no embalo dos vendavais que fustigavam seu sono. Era a terceira noite que dormia sentada no banco da Rodoviária de Curitiba. Durante treze anos seu corpo habituara-se a pouco conforto. Na infância dormira em colchão de palha, e passara frio nas noites de inverno, incapaz de puxar a coberta que aquecia as irmãs. Dormir sentada só não era mais torturante porque ela estava entorpecida de novidades e luzes. Boa escolha a rodoviária. Aberta vinte e quatro horas, iluminada, todos só de passagem. Mas aquela era a terceira noite, e a flor, sonolenta, faminta e aturdida, desabava sobre a cadeira alaranjada. Quando uma voz grave sussurrou em seu ouvido “ Você não gostaria de dormir numa cama quentinha?” ela sequer respondeu. Movida por uma vontade anterior ao raciocínio ergueu-se e seguiu a voz. Era uma bela voz, e soava tão distante, como se viesse de outras esferas, outra dimensão. Aquela voz era macia, como lençóis brancos e tolha felpuda, e quando ela soava, ao fundo ouvia-se uma orquestra de águas mornas. E vozes assim bonitas e confortantes só podem ser de anjos. Há treze anos esperava por um que a salvasse. E ele viera na hora de seu maior desespero e a guiava por uma estrada de taxis alaranjados e depois por uma trilha de luzes, na qual seguia leve como se fosse incorpórea.
Mas a trilha revelava-se sinuosa e sombria. E à medida que a luz empalidecia o torpor diminuía. Começou a sentir o movimento cadenciado das pernas e o esforço das pálpebras na luta contra o sono. O frio de março manifestou-se num arrepio permanente. Assustou-se ao perceber que não ouvia mais a voz macia e branca, morna e corrente. Caminhava em silêncio, e ao seu lado outros passos, mais duros e pesados do que os seus . Não olhou. Um alarme silencioso ressoou em seus ossos. “Que um anjo a guiasse pelo caminho mais estreito era plausível, mas esse era o mais escuro”.Agarrou-se na maravilhosa sensação que aquela voz despertara, e arrastada por ela seguiu até o fim da trilha. E sim, estava escrito hotel. Ainda havia uma esperançazinha, uma ínfima possibilidade, quando uma voz estridente pediu ao recepcionista um quarto. Pagamento adiantado, sem registro no livro. E quando uma chave foi posta sobre o balcão ela catou e no mesmo fôlego voou escada acima. Sentiu-se nos labirintos sensoriais de seus pesadelos quando um homem atravancou a porta antes que pudesse fechá-la. Ficou atônita com a rapidez que ele a alcançara. Não se deixou agarrar. Antes, abriu passagem. Ele percebeu seu medo, a porta entreaberta, e disse “ posso dormir nos seus pés?”. E foi então que ela o viu. Sim poderia dormir aos seus pés, atravessado na cama, pois era bem pequeno. E perceber isso amainou o medo. Segurou a chave com força, olhou a cama bem arrumada, inspirou o cheiro morno de mofo no cômodo, o cheiro de limpo e guardado entremeado nos lençóis e cobertas e ouviu uma sinfonia de águas mornas correndo em seu corpo. Num gesto inesperado jogou a chave sobre a cama e disse “ pode ficar com a cama inteira”. Voou escada abaixo no mesmo tom.
Voltou para a rodoviária tateando no escuro da memória. Súbito estava na Cadeira alaranjada novamente. Triste, como uma flor queimada pela geada. Engolindo o pensamento que a recriminava por não ter tido coragem de olhar nos olhos do homem que lhe tirara a inocência. Nunca reconstituiria a trilha de luzes. E sempre gostaria mais da penumbra.

Iriene Borges

sábado, 3 de janeiro de 2009

Cai o pano

Eu devia engolir a fala
do modo que engulo o choro
e o retenho com um nó na garganta
e outras linhas emaranhadas.

Mas a palavra me desata me destorce
faca afiada me destrincha expondo trapos
desfia o alinhavo
da figura adquirida em banca de retalhos
mostra-me em cada laivo a artesania
dos adereços de rebotalhos

A isso que sou
...................boneca de sonho
........................................títere do som

não cabe reter a palavra que resvala

Iriene Borges

Dance at Bougival

Pierre Auguste Renoir