domingo, 21 de março de 2010

Soulilóquio

há quem destrua o que  ama por não suportar perder-se, sem saber que na perdição cabe o encontro em se tratando de amor.

*

há quem pense que a selvageria é crueldade, e o selvagem é livre, quando a liberdade é uma crueldade para com a besta domesticada.

*

o (d)esperto não vê mais longe do que aquele que orbita a esfera dos sonhos


se não sabe ler a letra gorda que escorre dos olhos em linha clara, como poderia ler nas entrelinhas?!

*

a farpa finca-se mais fácil quanto mais fina e delicada
e a arrogância é mais mordaz em trajes de mendigo

*

o ápice é mais alto em negrumes versados e pulsões violetas do que em teus opiáceos

*

eu sou a água

*

tua existência materializa-se em estacas no meu coração desnecessário

*

desmaterializo em versos soltos os impropérios que devastaram meu domínio

*


separadas, minhas falas soam lâminas cegas
unidas,  soam chôro no gume da palavra

*

é metálico e reflexivo o olho que vigia a cova rasa da tua pretensa profundidade

*

ora cego-te no reflexo da lâmina cega
ora cevo-te no fio da lâmina afiada

*

a paixão é um doce amargo que afina minhas normas

serei sempre carne exposta e alma nua
a paixão é um doce amargo que desatina minhas formas

*

vi suas fotografias, suas caligrafias espalhadas no sorriso.
você é bonita demais.
a beleza em si é um sofrimento.
a beleza em si é um abandono.

*




no semblante uma máscara cuspida com desgosto
há visco de escarro no sorriso posto

*

não impõe inércia a mágoa vergastada
nem o término é prerrogativa de teus precipícios.
ademais o fim é revogável na ficção que me criei

*

recito com orgulho que não sou boa
e de quando fui boa me arrependo
o travoso Remorso de existir!

*

seiva adocicada
vertida em recortes aveludados e perfume
aconchego nas dobras do veludo escuro
meu ego obtuso 

*

a esperança que fere
me mantém acordada

*

a febre desmente a resignação

*


é meu bálsamo rasgar o verbo e larga-lo ao vento

*

ternas amarras nos gestos convulsos
vaga ameaça veda o revide
ainda me perco dentro do espelho
unho a superfície vítrea na agonia de arrancar
a expressão da minha face
caio nos sulcos semeados no meu rosto 
o vazio ocupa tanto espaço

*

e a minha íris de mar aberto
outrora engoliu tuas mentiras
a tristeza de agora é sedimento 
fundo irisado que mente preciosidade
e consente a limpidez da superfície

*

crueldade
já conheço seus meandros
ainda o espelho me estilhaça
a perplexidade lacera mais em lascas
álgidas ferroadas entretem a consciência 

*

cuidado

substância inflamavél inerte
até a próxima faísca
antes das tesouras
eu arremessava os fios soltos
e  tecias o encanto

*
a lágrima suspensa enforca o raciocínio

*

a janela fechada é um sorvedouro de sonhos
o fundo azul é  abatedouro de minhas revoadas 

*

a coreografia escarlate
esconde garras aparadas
sob esmalte
defaçatez

*

meus olhos espectadores camaleônicos
que não podem evitar cores diversas
transeuntes da urbe ensimesmada
andarilhos de orbes veladas
dejetos  deitados à sarjeta
passageiros de dragões articulados

*

eu coleciono palavras
não essas que dizes
a cuja ressonância
segue o zunido da lâmina
e o frio na espinha 

*

antes a marca cruzada dos dentes
e edemas que o tempo não absorvesse
*

abandono é uma palavra
às vezes adeus
às vezes entrega

*

inteira imperfeição

irrelevância que persevera
impertinência que reitera o erro

*
tem farpas de seda a mentira





Iriene Borges da Silva

sexta-feira, 19 de março de 2010

ex curo
escuro
noite
note

no te
te amo
te amo noite adentro
chuva que cai
te amo que cai
chuva noite adentro

ardente
arde
dente

dente
doente
do ente

que ente?

entre?
saia
calça
bota

botar aonde?

onde eu curo
escuro
ex curo
curto


Liliane Jochelavicius

sexta-feira, 12 de março de 2010


Desenho vetorizado by Jairo Alt

des fere

Arco entesado
desfiro a seta
e esbato frouxo
entre o gesto
e a meta

Entre a mosca
e o baque
tombo presa
na agonia
do achaque

gume preciso
risca o espaço
no viés da pena

Ah, seja pássaro
e do traço
rufle o poema

Iriene Borges da Silva

quinta-feira, 4 de março de 2010

Musas, medéias, medusas

Sacerdotiza do estranhamento,
a admiração suscita o zelo de procurar
a sombra do teu titereteiro
embora àspera a urdidura dos indícios
e fios soltos desvelem tua vileza

Cavalgadura da vilania,
dor é louro com que a musa me coroa,
mordaças reabastecem meu tinteiro
e dos ardis em que me enleias
teço a estopa que mantém a idéia acesa

Anjo obtuso do aniquilamento,
a perspicácia é o avesso da tua malícia.
Ainda é dádiva do artista a visão perspícua
e saber tanto abençoa quanto perturba

Mensageira da minha alforria
provar da tua sordícia é ordem da musa
para que nada escape à pena oblíqua
e seu legado grafe-se em tinta rubra

Iriene Borges da Silva

segunda-feira, 1 de março de 2010

Tormenta

À janela aparo a goteira

*

Há um encanto pureril em reverenciar os pingos

como em observar o andamento das nuvens

decifrar as nuances do crepúsculo

ou o escape do gato para o terreno baldio

perto da infância

*

Conforta dor

que tempestades de verão eternizem a criança

num organismo que se deteriora

*

A água que se esbate e a água que escorre

formam os acordes de uma poesia

que se esboroa no silêncio.

*

Eu aquieço

*

E o arvoredo se desfibra em coreografia espectral

verdes limpos

vivificados pelo magenta da enxurrada

Enquanto a escrita se desintegra

*

em mancha.

*

Iriene Borges da Silva